quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Chove, chove, chove. Faz cosquinha em mim. E aquele sorriso, cadê? Aqueles dentinhos... E o timbre coelhinho. A boca formava um coração. Meu abraço, um puro calor, e pontas. Quem conta, canta.

Acalenta minha memória, faz cosquinha e deixa a saudade em seu devido lugar. É difícil der...ramar

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Aquilo que você gostava em mim: não era eu


Sabe o que é estar desconectada de si mesma?

Quem estiver assim exatamente agora, é capaz de nem saber me responder ainda. Só depois que iniciamos um caminho controverso em busca de legitimar a nossa verdadeira realidade, liberando um sofrimento velado, é que nos damos conta do quanto estavam produzindo em nós uma pessoa sem carne e sem osso, apenas imagem. Uma pessoa que não era eu, nem você, nem ela, nem ela. 

O quão dissimulada uma mulher é capaz de ser? O tanto quanto vocês, “companheiros”, forem capazes de ser manipuladores com ela, em prol de uma Garota Exemplar.

A identidade da Garota Exemplar pode ser estrita ou mais plural, dependendo da cultura e influências que recebe. Algumas mulheres podem se identificar com o que vou descrever em alguns aspectos, mas certamente não em todos. Na minha cultura e no meu mundinho particular influenciado por fadas e princesas, a Garota Exemplar podia ser branca, magra e, principalmente, com um rosto angelical. Ponto positivo pra mim. Sempre me elogiaram nisso. 

Você sempre gostou disso em mim. Essa garota podia ser “fofinha”. Quanto mais meiga, mais baixo e fino falasse, mais doce olhasse... mais amor, carinho e elogios eu receberia de você. Quando criança, sem problemas. De início não tive muitas dificuldades nisso de ser fofinha. De certa forma, isso até fazia parte do meu jeito – o que não tem problema nenhum. Porém, obviamente eu não fui sempre só assim. Quando os hormônios começaram a se multiplicar, e a pré-adolescente irritada e insegura, e que (pasme) falava palavrão, começou a disputar essa identidade… a coisa começou a mudar de figura. Você nunca me incentivou a buscar me autoconhecer melhor para passar por esses períodos de transição, e iniciação, à mulher. Eu tentei sozinha, com meu diário. Mas uma pulsão forte em mim queria ser pra sempre fofinha. Infantil. Felizes para sempre.

(Rabisquei muitas páginas tristes de desabafos, que supostamente não eram dignas desse diário. Forjei meus próprios finais felizes).

E então outras Garotas Exemplares não tão angelicais passaram a ameaçar meu imaginário inicial. Vocês também me confundiram, e passaram a ser mais de um “você” exigente. Agora um novo você queria que eu também fosse extrovertida, sexy, que meus peitos crescessem (como você elogiava a cada vez que notava alguma diferença de tamanho neles!), que soubesse fazer sexo oral, como uma menina madura, que pudesse perder a virgindade (com você, é claro!) com no máximo 15 anos. Eu ficava confusa sobre como agradar você dessa vez, sobre o que eu mesma queria, ou devia querer. Não atendi a toda essa soma de requisitos contraditórios, não fui mais fofinha, briguei, te rejeitei, lutei pelas minhas paixões, lutei pela minha liberdade, não perdi minha virgindade nem tão cedo quanto você queria, nem tão tarde quanto você achava que controlaria. Talvez tenha sido o período em que estive mais perto de mim mesma, antes de você me distanciar novamente.

Assumindo que eu nunca chegaria à Garota Exemplar extrovertida, gostosa, que fizesse parte da elite da zona sul do Rio de Janeiro, que fosse “pra casar”, que não tivesse pêlos, e nem muito ciúmes, eu comecei a me odiar e ficar obcecada por você. Meu estômago começou a revirar a cada iminência de morte do nosso relacionamento. Meu chão ondulava e isso me deixava enjoada. Vomitei. Várias vezes. A cada ataque de histeria que eu mesma com minha voz baixa e doce reprimia em minha garganta, mas meu corpo expelia em forma de vômito, febre e outros sintomas, eu mais me repelia da garota ideal pra você. E mais sofria punições por isso. Frieza. Egoísmo, falta de empatia. Vingança. Tudo isso vinha de você, depois que você descobriu que eu não era assim a garota mais casta de todas, pois fiquei com outros garotos, fiquei com teu amigo. E terminei punida e com muita vergonha de ser a louca. “Sai daqui e vai procurar se tratar, garota”. Foi assim que levei meu primeiro pé na bunda por você, foi assim meu grande fracasso como Garota Exemplar. Foi assim meu primeiro gaslighting.

Depois disso tentei me recuperar, mas ainda estava vulnerável demais pra encarar meu esqueleto sem fugir. A selva e as mães de todas as cachoeiras do mundo feminino me chamavam para uma cura com águas, eu ia, mas ainda resistia um pouco em mergulhar, com medo de não ser mais querida por “ninguém”. Você demorou a se manifestar novamente, e veio se aproximando aos poucos de forma mais sutil, ao notar que eu estava me fortalecendo, não era tão boba. Os seus ataques não me atingiam diretamente, mas à mulher que contava sua história antes da minha. Você achou meu ponto fraco. Os medos dela passaram a ser meus também naquela simbiose que não se rompeu direito na infância. E os nossos contos de fadas se esfacelavam bem diante dos nossos olhos. Mas fomos fortes. Mergulhamos juntas. Deixamos a morte-vida chegar, arruinar pra depois reconstruir tudo. Mas não escapamos de sermos abusadas novamente. Objetificadas. Punidas por sermos quem somos.

Quando eu senti na pele e no trauma os seus ataques, foi até mais fácil pra mim dizer “não!”, cortar pela raiz, apontar o dedo na cara. Mas sutilmente eu fui sendo levada a querer estabilidade emocional sendo finalmente a Garota Exemplar Feminista Livre e Bem-resolvida que qualquer companheiro que não fosse tão “machista possessivo à moda antiga” iria desejar. O mais difícil era identificar você crescendo dentro das pessoas que eu amava. Eu poderia então perdoar você por qualquer deslize compreensível de um “homem”, mas meu comportamento não poderia nem chegar perto de reproduzir as mesmas coisas. Iríamos fingir que partimos das mesmas condições, pra conferir o rótulo de IGUALDADE na nossa relação, finalmente apaziguada. Eu não precisaria brigar pra conquistar meus direitos, era só pedi-los. Quando fossem convenientes, você iria me conceder. Era só lembrar aquele tipo de garota ideal sendo apenas fofinha, doce, gostosa, tranquila, compersiva, explorar a sexualidade talvez com outras garotas...continuar agradando. Nunca reclamando, nunca apontando machismo em você, porque isso é uma injustiça, uma calúnia, logo com você! Eu estaria perdendo a cabeça de fazer isso, eu estaria sendo egoísta, cruel, controladora e possessiva se quisesse questionar algo no seu comportamento. Enquanto eu reclamasse, só ganharia de volta a sua frieza, o seu desprezo. Apenas a parte de mim fofinha e compreensiva era digna de ganhar seu reconhecimento, seu amor, seus elogios e carinho. Eu tinha que achar que tinha algo profundamente errado comigo. Aquilo que você gostava e alimentava em mim ainda era uma mistura mais seleta de características da Garota Exemplar que fui moldando ao longo da vida. Todo o resto de que me apropriei e construí, meus trabalhos intelectuais, meus trabalhos na periferia, as coisas que eu achava interessante na internet, as músicas, as teorias feministas, o esoterismo, os ciclos e menstruação, os pêlos e fluidos do corpo, não eram nem nunca seriam tão admirados assim por você. Talvez fossem apenas tolerados, na medida do possível. Na medida em que seus privilégios não fossem ameaçados e eu ainda pudesse te agradar e ser um porto seguro pra você, na figura doméstica (por isso é que minha falta de habilidades culinárias não te agradava, e você me chamava de preguiçosa. não estou nem mencionando a questão da maternidade: isso outras podem expressar melhor que eu). Pra você se alavancar, seguir livre, leve e dominante, como sempre foi, antes de eu nascer. 

Porque você não gostava e não gosta de mim. Não gosta de mulheres. Você odeia mulheres. Você mata mulheres. 

Pra eu me reconectar a mim mesma, pra eu não morrer, tive que começar a ser mais radical. Me distanciei de você e estou na busca por autoconhecimento e poder. Meus limites agora estão mais visíveis, os conflitos não podem mais ser escondidos, os abusos não podem mais ser silenciados. Eu não sou nem nunca fui nada daquilo que você gostava. A garota que você dizia amar e as que você busca em outros corpos femininos não existe.

O que existem são dissimulações sem carne nem osso. Ou eu, e nosotras, em pessoa, sobreviventes.

Pois nos aguente.


Inspirações: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2015/10/dez-coisas-sobre-gaslighting-como.html
http://www.revistacapitolina.com.br/o-mito-relacionamentos-sem-cobrancas/