sábado, 27 de dezembro de 2014

Presente

Antigamente, até a virada do século, aquele senhor dando autógrafos podia ter todos os netinhos do mundo. Era só sorrir a uma criança e falar: "Faz de conta que eu sou seu vô". E ele eras.

ERAS (Manoel de Barros)
Antes a gente falava: faz de conta que
este sapo é pedra.
E o sapo eras.
Faz de conta que o menino é um tatu
E o menino eras um tatu.
A gente agora parou de fazer comunhão de
pessoas com bicho, de entes com coisas.
A gente hoje faz imagens.
Tipo assim:
Encostado na Porta da Tarde estava um
caramujo.
Estavas um caramujo – disse o menino
Porque a Tarde é oca e não pode ter porta.
A porta eras.
Então é tudo faz de conta como antes?

Uma das netinhas eras fada, escorregava no arco-íris, viajava pelos planetas desvendando mistérios e tinha um cavalo alado, dentre outras coisas. Teve até um dia que aprendeu a dirigir submarinos e seu pai eras subtaxista. Fazia de conta que a rede eras sua canoa, e os cachorros; tubarões. "Cada um com seu cada um", ela diria; e ele completaria: "Quem não tem ferramentas de pensar, inventa."

A MENINA AVOADA (Manoel de Barros)
Foi na fazenda de meu pai antigamente.
Eu teria dois anos; meu irmão, nove.
Meu irmão pregava no caixote duas rodas de lata de
goiabada.
A gente ia viajar.
As rodas ficavam cambaias debaixo do caixote:
Uma olhava para a outra.
Na hora de caminhar as rodas se abriam para o lado
de fora.
De forma que o carro se arrastava no chão.
Eu ia pousada dentro do caixote com as perninhas
encolhidas.
Imitava estar viajando.
Meu irmão puxava o caixote por uma corda de embira.
Mas o carro era diz-que puxado por dois bois.
Eu comandava os bois:
— Puxa, Maravilha!
— Avança, Redomão!
Meu irmão falava que eu tomasse cuidado porque
Redomão era coiceiro.
As cigarras derretiam a tarde com seus cantos.
Meu irmão desejava alcançar logo a cidade —
Porque ele tinha uma namorada lá.
A namorada do meu irmão dava febre no corpo dele.
Isso ele contava.
No caminho, antes, a gente precisava de atravessar um
rio inventado.
Na travessia o carro afundou e os bois morreram afogados.
Eu não morri porque o rio era inventado.
Sempre a gente só chegava no fim do quintal.
E meu irmão nunca via a namorada dele —
Que diz-que dava febre em seu corpo.

A diferença é que ela não sabia como era ter irmão. Mas logo depois saberia, por ironia ou não.

O tempo passou, o avô faz-de-conta e a menina nunca mais se viram. Mas ainda havia algo de comum naquele mesmo gosto por palavras. Naquele estranho prazer em retorcer as letras, subvertê-las e poder dizer então que é possível mudar tudo isso que aí está. Que, afinal de contas, podemos voar. Enfim, ela redescobriu: olha lá! Os versos que sua amiga recitou eram daquele seu antigo avô!

APANHADOR DE DESPERDÍCIOS (Manoel de Barros)
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Ela gostava de escrever, mas não queria mais ser o que optou quando cresceu. Queria ouvir, mais do que falar. Pois "só o silêncio faz rumor no voo das borboletas". Queria se metamorfosear.

BORBOLETAS (Manoel de Barros)
Borboletas me convidaram a elas.
O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.
Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens
e das coisas.
Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta 
—Seria, com certeza, um mundo livre aos poemas.
Daquele ponto de vista:
Vi que as árvores são mais competentes em auroras
do que os homens.
Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças
do que pelos homens.
Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do
que os homens.
Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que
os cientistas.
Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do
ponto de vista de uma borboleta.
Ali até o meu fascínio era azul.

E as palavras, como sempre, voltavam a lhes acompanhar. Até suas preferências eram semelhantes.

PALAVRAS (Manoel de Barros)
Palavra dentro da qual estou há milhões
de anos é arvore.
Pedra também.
Eu tenho precedências para pedra.
Pássaro também.
Não posso ver nenhuma dessas palavras que
não leve um susto.
Andarilho também.
Não posso ver a palavra andarilho que
eu não tenha vontade de dormir debaixo
de uma árvore.
Que eu não tenha vontade de olhar com
espanto, de novo, aquele homem do saco
a passar como um rei de andrajos nos
arruados de minha aldeia.
E tem mais uma: as andorinhas,
pelo que sei, consideram os andarilhos
como árvore.

Enfim, o poeta-avô bateu asas e avoou. Virou passarinho (como ele mesmo disse de Bernardo). À menina avoada, restou todo amor. E, dos três inventos do velhinho, teve um que ela mais se afeiçoou: o fazedor de amanhecer.


O FAZEDOR DE AMANHECER (Manoel de Barros)

Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas
prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.

Bom, sono ela já tem demais, e o platinado foi para o irmão dele, tantos anos atrás... Então foi o fazedor de amanhecer, com um autógrafo, que sua netinha-faz-de-conta pegou. Só que depois, numa forte chuva, ele molhou... as páginas enrugadas, as letras interrompidas, mas ele nela continua vivo, e tudo continua dito.

Se Manoel em alguma energia puder ler essa meia-narrativa, agora assim eu a terminaria: 
vô, sou grata.



*poemas retirados dos livros "O fazedor de amanhecer", "Exercícios de ser criança", "Ensaios fotográficos - 2ª parte" e "Poesia completa (2013)"

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Fantasma de mim

Estou exatamente diante das sombras que fizeram de mim.
Ou de luzes refletidas, como queirais chamar,
Mas a mim parece mais coisa daquelas
de assustar

Cansada de projeções, "homenagens", obrigadas
Não preciso de alguém pra me reinventar
Não preciso, nem mesmo pretendo
ser O brilho em vosso olhar
ser a Lua ou qualquer inanimado
com movimentos por vós guiados.

Duvido que se eu engordasse
Mudasse a cor ou o rosto, os padrões
ditados pela elite europeia
Tanto homem falaria em paixões

Não, tudo o que fazeis de mim
É só um quadro, retrato pensado
Pois o ser humano que vive por aqui
Luta por mais que vosso sexual agrado

O ser humano que vive por aqui
Caminha, menstrua, fala, se joga, encerra.
Carrega, pro resto da vida, sua própria história
Independente de romances de novela

O ser humano que vive por aqui
Pode ser viado, assexual, sapatão
Mas aquele fantasma, senhores, que em vossos sonhos diz sim
na realidade sou a mulher, estuprada, culpada, silenciada
quando digo chega! quando digo não.